Maria Amália Forte Banzato
Sou educadora há mais de vinte anos e essa experiência foi fundamental para que eu pudesse me compreender e também compreender meus alunos, meus filhos e as pessoas a minha volta.
Inquieta por natureza, a paixão pela sala de aula me levou a questionar a minha prática e também a questionar novos caminhos e respostas para as minhas dúvidas e inquietações.
Algumas questões me acompanharam durante algum tempo: Qual é, de fato, o papel da escola? O que acontece quando os alunos se reúnem em grupo?Os sentimentos e afetos interferem no processo de aprendizagem?
Qual é a razão de tanta violência nas famílias e nas escolas?Como ensinar os alunos a se relacionarem e a manifestarem seus afetos e emoções? Há espaço na escola para esse tipo de trabalho ou a preocupação está mais voltada para a informação?
Nesta minha jornada descobri que muitas das causas de dores e infelicidades estavam na distância que vamos tomando de nós mesmos em prol de um cotidiano e das exigências a que nos submetemos em nosso dia-a-dia.
Esquecemos de ser, de sentir, de sonhar, de realizar; esquecemos de perguntar para nós mesmos o que queremos e em que acreditamos. Vamos vivendo. Aceitando os desafios da vida.
Amor, alegria, raiva, tristeza, coragem, medo, vergonha, confusão, potência, impotência, paixão... Tudo isso acontece dentro da gente!
E o que fazemos com esse turbilhão de sentimentos e emoções que nos acompanham em nosso dia-a-dia? Como lidar com eles? O que devemos fazer quando sentimos raiva, tristeza e amargura? E quando sentimos alegria, amor e coragem?
Passamos a maior parte do tempo camuflando nossos sentimentos porque não nos parece correto falar sobre eles. Não fomos ensinados a lidar com nossos sentimentos e emoções. Ensinaram-nos o que é certo e errado, o que podemos e o que devemos fazer, mas e nossas emoções, o que fazemos com elas?
Passamos a vida negando as nossas emoções e não nos damos conta que isso vai nos retalhando, vai nos trazendo dores e tristezas, nos tornando um vulcão a ponto de explodir a qualquer momento. Vamos nos afastamos de nós mesmos e das pessoas; tornamo-nos mais irritáveis e violentos.
Falar dos nossos sentimentos e emoções ainda é um tabu e muitas vezes nos negamos a fazer isso em prol do profissionalismo, das funções que exercemos, e da nossa própria rotina.
Como educadora, tenho percebido essa dificuldade por parte de educadores, pais e educandos. Pensar conteúdos relacionais ou ensinar a lidar com afetos ainda é algo que nos assusta, que parece não fazer parte do universo da educação. Mas afinal, como podemos ensinar algo que não fomos ensinados? Acredito que o problema está exatamente aí; é aí que mora o nosso grande desafio. Será que não é chegado o momento de fazer uma reflexão coletiva sobre essa violência que nos acomete a todos. A violência é cenário nas escolas, nas famílias e na sociedade. A agressividade permeia a relação dos alunos entre si, dos alunos com os professores e também com seus pares. A indisciplina gerada pelos grupos é um grito surdo de socorro. Há pouca tolerância para lidar com as diferenças e os afetos. Quanto cada um de nós está implicado nesta questão e também é responsável por esses fatos? Responsabilizar o governo, a economia e tantos outros órgãos é tarefa fácil que nos libera da responsabilidade enquanto cidadãos.
É possível pensar soluções e buscar saídas para tal problema? O que cabe a cada um de nós? Minha experiência como educadora e coordenadora pichoniana, mobilizada pelas questões das relações e dos afetos em sala de aula, me dão a certeza de que nos educadores/pais podemos juntos buscar saídas para essa questão. Como? Criando um espaço onde os afetos e desafetos possam ser compartilhados, discutidos e modificados.
Parece-me que a violência é resultado de emoções reprimidas e negadas durante todo o processo de ser e estar no mundo. Não podemos nos esquecer que somos seres sociais constituímo-nos e reconhecemo-nos na relação com o outro. O outro nos convida a revelar valores e conhecimentos, mobiliza sentimentos e afetos, possibilita repensar, revisar e transformar a partir das relações e das tarefas que realizamos coletivamente.
Penso que, se integramos nossos sentimentos e emoções em nossas vidas, se criarmos um espaço em sala de aula onde os afetos possam ser compartilhados, entendidos e discutidos, estaremos oportunizando nossos alunos a lidarem com suas emoções. Teremos a possibilidade de vislumbrar indivíduos emocionalmente mais equilibrados, capazes de lidar com as emoções, de resolver problemas e de pertencer ao grupo como agentes de seu próprio processo.
A Circulação dos afetos na vida e em sala de aula possibilita desenvolver a capacidade do autoconhecimento, do conhecimento do outro, gerando uma relação de respeito mútuo e de corresponsabilidade para transformar a realidade em que estamos inseridos.
Para que isso seja uma experiência de sucesso, precisamos nos disponibilizar como indivíduos e educadores a uma reflexão individual e coletiva sobre esses aspectos e também nos exercitarmos nessa tarefa que não nos ensinaram.
Em 1989, a partir da vivencia em sala de aula no ensino Fundamental, criei um projeto que intitulei “A Circulação dos afetos e o desenvolvimento da aprendizagem” o mesmo teve por objetivo despertar a potência dos alunos, resgatar sua chama como indivíduos, sua dignidade e ideal. Mais do que informar acredito que tanto a escola quanto a família e a sociedade tem a obrigação de possibilitar sua formação enquanto indivíduos que pensam, choram, se alegram e se entristecem.
É necessário criar um espaço onde os sentimentos possam ser ouvidos, entendidos, integrados e compartilhados entre os membros do grupo. Um espaço onde os alunos possam reconhecer suas potências e dificuldades.
A circulação dos afetos no grupo contribui para o desenvolvimento da aprendizagem de maneira significativa, pois possibilita que os alunos tomem consciência do seu processo podendo SER, PERTENCER E ATUAR como protagonistas da sua própria história e do seu processo de aprendizagem.
Foram mais de quinze anos desenvolvendo esse projeto em sala de aula e pude durante esses anos aprimorar a minha prática através de teorias e estudos realizados. Muitos foram os autores e concepções que contribuíram para esse trabalho. Mas quero ressaltar um que, em especial- Pichon Rivière- me confirmou naquilo que acredito, e me deu ferramentas e a compreensão das dinâmicas grupais. Com a luz da psicologia social pichoniana foi possível compreender melhor o papel e a função do educador e também enriquecer minhas intervenções a partir do conhecimento adquirido sobre o espaço psicossocial do grupo e seus integrantes.
Os conteúdos novos apresentados em sala de aula mobilizam pensamentos e sentimentos nos alunos, é um momento de ansiedades e medos que precisam ser reconhecidos, tratados e compartilhados para que a aprendizagem aconteça. É necessário propor aos alunos a tomada de consciência desse processo para que possam reeditar, transformar e significar a nova aprendizagem.
O conceito de grupo e suas implicações no ato de aprender.
Qual é o papel do grupo no processo de ensino-aprendizagem? Será que a tarefa é clara para os educadores e educandos? O grupo de alunos em sala de aula é convidado para compartilhar os projetos, as metas, os conteúdos, os problemas, as aflições e as conquistas? Há espaço para a construção de um grupo e de uma tarefa compartilhada? Como garantir a individualidade do aluno e promover a identidade grupal? Como lidar com as diferenças? E o educador, qual é o seu papel? Quem é ele neste grupo?
Antes de tudo o educador deve ter clareza da sua função, de sua tarefa e do papel que desempenha no grupo. O educador não é o amigo, não é a mãe e nem o colega de classe. Ele deve ter uma relação assimétrica com seus alunos, pois sua tarefa no grupo é diferente de seus integrantes. O educador promove o processo de ensino-aprendizagem, que ele tem como tarefa promover a operatividade do grupo e o protagonismo de seus integrantes. Para isso ele precisa conhecer quais são as leis que regem o grupo.
Para Pichon Rivière, “grupo é um conjunto restrito de pessoas que, ligadas por constantes de tempo e espaço e articuladas por sua mútua representação interna, se propõe de forma explicita e implícita a uma tarefa, que constitui sua finalidade, interagindo através de complexos mecanismos de assunção e atribuição de papéis.”
Para Pichon, há dois organizadores do grupo: TAREFA e VÍNCULO.
A tarefa é o fazer conjunto, é a operatividade grupal, porém a realização de uma tarefa mobiliza sempre pensamentos e sentimentos que precisam ser compartilhados, explorados, discutidos e entendidos por seus integrantes para a produção grupal.
O vínculo é uma estrutura complexa de relações interpessoais, numa representação que implica em uma vivência externa e também em uma construção interna a partir da ação conjunta que envolve comunicação e aprendizagem. Na construção grupal o vínculo se estabelece em torno de uma tarefa e as diferenças são um cenário fértil para a aprendizagem. A eficiência dessa construção depende da clareza, da comunicação e dos vínculos em torno do ato de aprender ou da tarefa grupal.
Conclusão
A circulação dos afetos na vida e na escola possibilita uma relação mais honesta e verdadeira entre seus membros. Exige um investimento pessoal e grupal e também a presença constante de um educador que observa, sente, se arrisca, encaminha, ouve, pensa, reflete e compartilha os passos do grupo promovendo uma comunicação clara e fluída, cuidando das relações interpessoais e do vínculo estabelecido entre seus integrantes.
Educadores e educandos precisam ser parceiros eficientes, criativos e audaciosos. A construção do grupo necessita de um espaço para as competências, as facilidades, dificuldades, as dores, as alegrias, as conquista, os afetos e desafetos, as diferenças, os medos...
É um constante investimento, é um aprender a SER, a PENSAR, a SENTIR e a AGIR com o outro.
Artigo escrito para a revista GRUPO- edição especial de aniversário do Instituto Pichon Rivière- 2005